As horas

No último domingo, os relógios norte-americanos perderam uma hora, ou melhor, os moradores desse país (minha mais nova morada, os Estados-Unidos) ganharam uma hora com o fim do horário de verão. Eu demorei alguns dias para acertar os meus ponteiros e, quando o fiz, me dei conta de que desde que cheguei por aqui, há um mês, tive de ajustar as horas pela terceira vez por razões diferentes. Primeiro, a mudança de fuso horário, depois, o início do verão brasileiro (o que também me fez acertar as horas para poder continuar conectada aos amigos e a família que ficaram) e, agora, quando o outono vai aos poucos perdendo as suas cores, o regresso ao horário-sem-verão.

Essa multiplicidade de horas e ajustes me fez pensar sobre o tempo: aquela invenção humana, categoria mutável, transitória e, portanto, inexoravelmente variável. O tempo nos envolve e também é um espaço que habitamos. Mas são tão diversas as formas de concebê-lo e de se apropriar dele, tão diferentes as maneiras de encarar e de lidar com os seus determinantes.

Vez ou outra me vem á memória um excerto de um clássico da antropologia, escrito por Evans-Pritchard, em que, ao descrever os modos de vida de um povo do deserto sudanês, fala sobre a ideia de tempo entre eles, invejando-a:

Embora eu tenha falado em tempo e unidades de tempo, os Nuer não possuem uma expressão equivalente ao “tempo” de nossa língua e, portanto, não podem, como nós podemos, falar do tempo como se fosse algo de concreto, que passa, pode ser perdido, pode ser economizado, e assim por diante. Não creio que eles jamais tenham a mesma sensação de lutar contra o tempo ou de terem de coordenar as atividades com uma passagem abstrata do tempo, porque seus pontos de referência são principalmente as próprias atividades, que, em geral, têm o mesmo caráter de lazer. Os acontecimentos seguem uma ordem lógica, mas não controlados por um sistema abstrato, não havendo pontos de referência autônomos aos quais as atividades devem se conformar com precisão. Os Nuer têm sorte. (Evans-Pritchard, E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 116)

Eu e o tempo

Eu sou um ser vagaroso, do reino dos lentos, e com problemas sérios de “timing”. Ando sempre atrasada e levo uma vida bastante distante da ideia de tempo linear, programático, esquadrinhado e eficiente. Toda essa coisa de hora pra acordar, hora pra comer, pra chegar e sair, tudo isso me cansa um bocado. No Brasil ou nos Estados Unidos, sempre foi assim. Mas, digamos que aqui os atrasos parecem menos tolerados e os esquemas menos flexíveis. Talvez por isso os meus desconfortos diante do passar das horas estejam ainda mais evidentes e incômodos.

Corro uma maratona todas as manhãs desesperada para chegar a tempo de pegar o ônibus que deveria passar às 9:20, mas, esporadicamente, passa mais cedo que o horário combinado, pois não tem a mínima intenção de contemplar os que chegam no ponto no último segundo. Já me cansei de recolher roupas encolhidas na máquina de secar, por não ter calculado bem o tempo de secagem. Estou quase me acostumando ao frio glacial do meu quarto quando chego de volta a casa no fim do dia e descubro ter me esquecido de programar o aquecedor para algumas horas antes da minha chegada. Também já virou rotina escutar aquele cordial “Next, please!” quanto me demoro apenas alguns segundos a mais na fila da cafeteria da universidade procurando os trocados na carteira.

A obsessão esquemática me levou à triste dependência de calendários, agendas, listas de atividades a serem cumpridas e lembretes por toda parte. Cada uma das mais simples ações do meu dia deve ser planejada e executada precisamente em sincronia com os outros programas, as tabelas dos ônibus, os horários do banco, o fechamento das lojas, bibliotecas e assim por diante. Quase sempre, ao fazermos isso, criamos expectativas irrealizáveis que vão inevitavelmente gerar frustrações ao fim do dia. Somos todos impelidos a nos ajustar a um esquema temporal fixo e ‘supra-subjetivo’ que transforma toda e qualquer espera ou viagem perdida num desperdício de tempo insuportável.

Não ter medo de perder tempo

present-moment-road-signVivemos com medo de perder tempo ou de ser julgados pelos nossos atrasos, mas o tempo é uma categoria arbitrária. Esse nosso jeito de encará-lo tem se alimentado da objetividade dos espíritos modernos no lidar com os homens e as coisas através de uma dureza implacável. Os segundos, minutos, horas e, depois, dias, meses e anos correm sem pausa, indiferentes à vida e à morte, às alegrias ou tristezas. Não há espaço pros impulsos irracionais, pras surpresas ou tropeços. As horas parecem querer determinar o ritmo da vida, mas sabemos que são insuficientes para abarcar a experiência.

Esse texto não quer ser justificativa para minha tendência à indisciplina. Para além da minha falta de habilidade para a pontualidade, calculabilidade e exatidão, o problema colocado me parece de ordem maior. Se ao olharmos para o relógio a única coisa que ele nos disser for o quanto devemos correr para não nos atrasar para o próximo compromisso, a nossa relação com o tempo estará inevitavelmente tomada pelo sentimento de culpa diante daquilo que não fizemos ou, ainda, submetida à angústia associada ao que devemos realizar no futuro.

Parece-me que se pudéssemos resistir a essa lógica e ver além das horas que oprimem, elas nos falariam mais da brevidade e raridade dos encontros, da beleza do instante presente que não se repete, das possibilidades abertas pelas fissuras do imprevisível ou, ainda, da potência revolucionária contida na ideia de recomeço. Estaríamos, assim, mais comprometidos com o presente. E o nosso tempo se tornaria um espaço mais habitável.

ana elisaAna Elisa Bersani – Formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), em 2010, é mestranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Com especial interesse nas áreas de Antropologia do Desenvolvimento e da Ajuda Humanitária, desenvolve pesquisa com ênfase em contextos de crise e pós-desastre. Tendo realizado pesquisa de campo no Haiti, integra, atualmente, o conjunto de Visiting Students do MIT Anthropology (Massachusetts Institute of Technology) em Boston, Estados Unidos.